O ESTATUTO DO ERRO NA LÍNGUA ORAL E NA LÍNGUA ESCRITA



Autoria: Stella Maris Bortoni-Ricardo (UNB)

Em trabalhos recentes, voltados principalmente para a formação de professores alfabetizadores e de séries iniciais (Bortoni-Ricardo, 2004a e b), tenho discutido muito a questão de erros de ortografia. Propus mesmo que seja feita uma distinção funcional entre erros de ortografia que resultam da interferência de traços da oralidade e erros que se explicam porque a escrita é regida por um sistema de convenções cujo aprendizado é lento e depende da familiaridade que cada leitor vai adquirindo com ela, em diversos suportes: livros e textos impressos em geral, áudios-visuais, internet e outros usos do computador , outdoors e quaisquer objetos portadores de textos.
Estou incluindo neste trabalho fragmentos do Projeto PRALER (www.fundescola.mec.gov.br), que ilustram o tratamento sociolingüístico que venho conferindo aos textos voltados para a formação de professores das séries iniciais do Ensino Fundamental.

Fragmento 1:
Todos sabemos bem que nossos alunos, quando chegam à escola, já são capazes de falar com muita competência o português, que é a língua materna da grande maioria dos brasileiros. Você não precisa se preocupar em ensiná-los a se comunicar usando a língua portuguesa em tarefas comunicativas mais simples, do dia-a-dia, que já fazem parte de sua competência comunicativa. Todos nós começamos a dominar essas tarefas comunicativas desde nossos primeiros meses de vida. À medida que a criança cresce vai ampliando essas habilidades.
No entanto, é nossa tarefa na escola ajudar os alunos a refletir sobre sua língua materna. Essa reflexão torna mais fácil para eles desenvolver sua competência e ampliar o número e a natureza das tarefas comunicativas que já são capazes de realizar, primeiramente na língua oral e, depois, também, por meio da língua escrita. A reflexão sobre a língua que usam torna-se especialmente crucial quando nossos alunos começam a conviver com a modalidade escrita da língua.

Fragmento 2:
Em primeiro lugar, os professores-alfabetizadores têm de aprender a fazer a distinção entre problemas na escrita e na leitura que decorrem da interferência de regras fonológicas variáveis e outros que se explicam simplesmente pela falta de familiaridade do alfabetizando com as convenções da língua escrita. [...]
Na análise dos problemas ortográficos, começamos por recolher amostras da produção escrita de nossos alunos. Nessas amostras identificamos palavras ou seqüências cuja grafia ainda não está de acordo com as regras da ortografia. Em seguida, fazemos a distinção entre problemas ortográficos que são reflexos de interferências da pronúncia na produção escrita e problemas que decorrem simplesmente do caráter arbitrário das convenções ortográficas. Por exemplo, se o alfabetizando escreve: “O que eu quero se quando crece e um contado ingual meu pai”, sabemos que ele escreveu “se”, “contado” e “crece” (ser, contador, crescer) sem o “r” final porque ele pronuncia com freqüência essas palavras sem o fonema /r/ final. Também na palavra “ingual”, podemos supor que a regra de nasalização de sílabas iniciais seja produtiva em seu repertório. Já na palavra “crece” (crescer) a ausência da letra “s” no dígrafo “sc” não se explica por interferência da oralidade, mas pela pouca familiaridade do alfabetizando com as convenções da escrita. A coleta desse material nos ajuda a visualizar o perfil sociolingüístico dos alunos, considerando-se aí seus antecedentes sociodemográficos, bem como seu repertório estilístico nas modalidades oral e escrita. De posse dessas informações, o professor poderá organizar uma agenda do trabalho pedagógico com aquele aluno e os demais. Ao desenvolver essa agenda, estará coletando mais dados para realimentar sua análise.

Fragmento 3:
No texto seguinte encontramos vários problemas na ortografia que são decorrentes da influência da fala na escrita e também problemas que não se explicam pela pronúncia mas, sim, pelo fato de que a jovem autora do texto ainda tem pouca familiaridade com as convenções da língua escrita.

O Paiz
Meu sonho é ser feliz
é conhecê novos lugares
e conhecê o mundo
Meu sonho é ter muintos mais amigos

Meu sonho era que o mundo foce um paraizo
tudo moderno
mais tudo em paiz
cada um no seu lugá

Nota: A autora é uma menina de 9 anos, cursando 3ª série no Distrito Federal. O texto foi coletado por Juliana Moreira Del Fiaco, aluna do Curso de Pedagogia na Universidade de Brasília.
Vamos começar a analisar o texto pelos problemas que resultam de interferência na fala na escrita.

Quer saber mais sobre a análise destes fragmentos? Leia o texto na íntegra através da obra: BORTONI-RICARDO, Stella Maris (2006). O estatuto do erro na língua oral e na língua escrita. In: GORSKI, Edair Maria; COELHO, Izete L. (Orgs.) Sociolingüística e ensino: contribuições para formação do professor de língua. Florianópolis: UFSC, p.267-276.

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